sábado, 13 de fevereiro de 2010

PAISAGEM DE DRUMMOND

Paisagem: como se faz

Esta paisagem? Não existe.
Existe espaço vacante
a semear de paisagem
retrospectiva.
A presença da serra, das embaúbas,
das fontes. Que presença?
Tudo é mais tarde
vinte anos depois. Como nos dramas.
Por enquanto o ver não vê.
O ver recolhe fibrilhas de caminho, de horizonte
e nem percebe que as recolhe
para um dia tecer tapeçarias
que são fotografias
de impercebida terra visitada.
A paisagem vai ser. Agora é um branco
a tingir-se de verde, marrom, cinza.
Mas a cor não se prende a superfícies
não modela.
A pedra só é pedra no amadurecer longínquo
e a água desse riacho, não molha o corpo nu.
Molha mais tarde.
A água é um projeto de viver
Abrir porteira. Range. Indiferente.
Uma vaca-silêncio. Nem a olho.
Um dia este silêncio-vaca, este ranger
baterão em mim, perfeitos,
existentes de frente,
de costas, de perfil,
tangibilíssimos. Alguém pergunta ao lado:
O que há com você?
E não há nada
senão o som porteira, a vaca silenciosa.
Paisagens, país
feito de pensamento da paisagem,
na criativa distância espacitempo,
à margem das gravuras, documentos,
quando as coisas existem com violência
mais do que existimos: nos povoam
e nos olham, nos fixam. Contemplados,
submissos, delas somos pasto,
somos a paisagem da paisagem.

Carlos Drummond de Andrade

Nenhum comentário:

Postar um comentário